Vejo a rua da janela. Não posso falar com ninguém. Nem sair deste quarto. Apesar de tudo parecer velho aqui, os meus olhos são de criança. Ainda me sinto na idade dos porquês. Nada mais fiz nesta vida do que duvidar de tudo e de mim. Quase todos os meus pensamentos são perguntas que não sei ou não quero responder. Gostava de poder voltar a brincar com a minha família. Como gostava mais uma vez deitar-me com a minha cabeça no colo da minha mãe e ela pentear-me lentamente os cabelos. Gostava de comer com os meus pais na véspera de Natal, outra vez. Mesmo que não houvesse bacalhau. Lembro-me de os meus pais, em vez da sopa habitual, prepararem batatas com couves no Natal porque não tínhamos dinheiro para mais... Íamos à missa da meia noite como presente e convivíamos com toda a gente da aldeia. Eram outros tempos. Mas podiam ser hoje de novo que eu não me importava. Mesmo que os miúdos gozassem comigo e as raparigas olhassem-me de lado por ser mais pobre do que a maioria. Agora, temos tudo. No entanto, eu só tenho esta janela.
Por vezes, penso que a minha hora de partir pode chegar e qual será a última imagem que terei? A minha filha a dizer « desculpa, mãe, mas tem de ser», a minha neta a dizer « as outras avós dão dinheiro e doces aos netos» com cara de birra? Queria ter melhores memórias. Memórias mais doces ao partir.
Observo a chuva a cair e lembro-me que eu também disse à minha mãe: « Desculpa mãe, mas não tenho espaço para ti», «não tenho dinheiro para te acolher» era o que eu queria dizer, mas não disse, não podia dizer. E também não quis discutir com o meu marido, sabia que a minha mãe não gostava dele e ele não ia compreender... e outras questões que agora parecem tão insignificantes nesta solidão e nesta culpa. Quantas vezes a fui visitar na casa da minha irmã? Agora, parecem-me tão poucas. Ninguém faz-nos tanta falta como a nossa mãe. Colherás o que semeares. Estarei a colher os frutos do meu desprezo e comodidade? Nem posso dizer que estar nesta letargia é devido à pandemia, porque mesmo antes dela, já a vida era assim, um arrastar de horas vazias. Nem olhos mais para ler, tenho. O que posso fazer?
No prédio em frente abre-se uma janela. Uma menina da idade da minha neta sorri para mim. Pelo menos penso que sim. Quantas mais pessoas estarão à janela quando chove? Porque ela abre a janela com este frio?
Como uma lufada de ar fresco no meu tédio, observo aquela menina que traz vida a este dia. Ela parece gostar da chuva que todos temem. Vestiu o seu pequeno vestido de bailarina e parece quer improvisar um pequeno palco. Entra de novo no seu apartamento que agora reparo que tem uma ampla varanda. Eu não consigo ver muito bem, mas consigo ver que tem um tapete falso verde que faz o efeito de um pequeno jardim. A casa também deve ser grande e a menina deve ter uns seis anos. Será que ela também está cansada de estar em casa? E os pais o que estarão a fazer para não a estarem a ver?
Poucos minutos depois ela volta com uma pequena mesa, um toldo da janela é puxado e ela deixa de estar à chuva e duas sombras vêem-se na janela, ainda que indistintas para mim. Devem ser os pais e os responsáveis da pequena. O meu interesse está preso na menina e não consigo pensar em mais nada a não ser na curiosidade do que ela irá fazer. Ela sobe para o palco improvisado olha para o prédio onde estou. Não olha para mim diretamente, mas para todo o prédio, como se ele fosse uma pessoa de reverência. Ela faz uma vénia de bailarina. Sorrio totalmente interessada no espetáculo. A bailarina começa o seu bailado que apesar da mesa limitada é executado com uma destreza incrível. No bailado é sobre a solidão e como aquela pequena deseja ter alguém para brincar e falar. Pelo menos, assim me parece. Sinto-me a arrepiar. Continuo a sorrir, mesmo quando as lágrimas correm pela minha face. Ela parece bailar para mim e falar a verdade que dói no meu coração.
***
Beatriz andava de um lado para outro. O seu espetáculo de bailado foi cancelado. Logo o seu primeiro espetáculo, quando ela tinha oportunidade de demonstrar todo o seu esforço e o tamanho do seu sonho que era ser bailarina. A sua mãe sempre dissera que era difícil, mas com esforço nada era impossível. Ela tinha sido uma boa menina. Tinha-se esforçado. Foram muitos meses a acordar cedo, mesmo quando os seus olhos se colavam, ela esforçava-se e não reclamava para a mãe não recordar « se não quiseres fazer isto, não fazes». O dia chorava até ele tinha pena do espetáculo que ficou por acontecer. Enquanto via a chuva com mau humor, reparou no prédio da frente. Uma senhora quase colada na janela para não ver nada a não ser aquele dia que chorava. Teve uma ideia.
- Mãe, eu quero dançar! - disse ainda com voz de birra para a mãe que via televisão.
- Filha, diz-me o que posso fazer se eles cancelaram? - suspirou a mãe cansada daquela birra que parecia não ter fim.
- Eles cancelaram, mas eu quero! – disse Beatriz obstinada.
A mãe encolheu os ombros enquanto a pequena abria sorrateiramente a janela e depois foi buscar a sua mesa de brincar que era muito maior do que ela. Quando a mesa caiu porque a pequena não conseguia com ela, a mãe reparou que Beatriz estava a preparar das suas.
- O que andas a fazer?! - começou a mãe a pensar que traquinice ia agora a filha fazer.
- Estou a preparar o meu espetáculo na varanda! – a pequena informou com as mão na cintura e ar empertigado. O seu ar de bailarina do desenrasca fez a mãe ter vontade de rir.
- Mas está a chover! - ralhou a mãe – além disso, o que adianta dançares na varanda, se ninguém vai ver?
- Mãe, uma bailarina dança quais forem as suas condições! - repetiu a pequena uma frase que a sua professora de ballet adorava falar nas aulas.
- Hum, só te deixo se deixares correr o toldo para te proteger da chuva – negociou a mãe que estava divertida com a teimosia da filha.
A pequena concordou. A mesa foi posta a janela aberta para se ouvir a música já muito ensaiada e a menina iniciou o seu bailado. A mãe chamou o pai e os dois se encostaram à janela e pensaram eles que eram os únicos espetadores da filha. No entanto, no final do bailado, a menina estava a agradecer para o prédio da frente quando o sol voltou a brilhar. Como se o sol a viesse aplaudir e à sua pequena peça. O toldo foi levantado e os pais se surpreenderam ao ver que o prédio ao lado, que pertencia a um lar de idosos, estava cheio de pessoas à janela com lenços nos olhos e outros que abriram as suas janelas para aplaudir a pequena. Até o céu se lembrou de celebrar a arte que une corações, trazendo um arco-íris para todos verem e celebrarem.
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