Áurea nasceu às onze horas e onze minutos do dia onze de novembro. A partir desse momento, ou desde que se lembrava, sempre viu sombras e luzes em todos os lugares. A mãe explicou-lhe que as luzes eram o brilho natural das coisas e as sombras eram a ausência de luz. Áurea não falava muito. Brincava com brilhos e sombras a disputarem por espaço, como os reis numa história de aventura. Nada que os pais considerassem estranho.
Quando Áurea entrou na escola primária, nunca mais ninguém a ouviu falar em tais palavras como “brilho” ou “sombra”. Estava sempre rodeada pelas meninas da escola que gostavam do seu cabelo ruivo e das suas bonecas. A sua paixão pelos números nascera nessa altura. A matemática era a sua melhor disciplina. Todos os dias, anotava todas as capicuas que via e contava à mãe e às suas colegas, que já se riam com a sua estranha peculiaridade. A sua capicua preferida era a 11.11. Sempre que eram onze horas ficava hipnotizada a olhar para o relógio à espera dos onze minutos seguintes.
No dia que entrou no seu sétimo ano de escola, viu as coisas do costume. As sombras escondidas nos cantos da escola. Os brilhos no jardim com um pequeno lago de tartarugas. Na sala de aula, a professora parecia um vulcão de raiva prestes a explodir. A sua voz saía ríspida e tratava todos os alunos com um desprezo palpável. Áurea só pensava que não queria estar presente no momento que ela explodisse. Naquele primeiro dia, só teria uma aula.
Aquela escola tinha mais sombras do que a anterior. Áurea não tinha receio. Era assim mesmo, havia locais com mais sombras e outros com mais brilhos. No entanto, ao descer as escadas, reparou que no outro lado do corredor, rodeado por sombras, estava o seu número. Sem pensar, dirigiu-se àquele número. Naquele canto da escola estava uma arrecadação de cadeiras e mesas umas sobre as outras estando apenas uma porta desimpedida que tinha a inscrição “11.11 – Bem-vinda ao Clube da Luz”. Áurea não teve dúvidas que aquela inscrição era-lhe dirigida. Ao entrar viu uma sala acolhedora com móveis de madeira antigos, uma grande janela onde passava a luz e muitos brilhos. Assim que entrou a porta fechou-se. Os brilhos, pela primeira vez, falaram com ela:
– Bem-vinda, Amiga! Estamos tão felizes por estares aqui!
Áurea não soube o que responder. Ainda estava a tentar perceber o que falara com ela, ou seria o ar, ou espíritos? Os brilhos?
– Vem, senta-te! – a cadeira arrastou-se para trás. – Nós explicamos-te tudo!
Áurea sentou-se com o coração descompassado e com dúvidas se não estaria a sonhar.
– Q-Quem são vocês? Q-Quem está a falar comigo?
– Oh! Amiga! Somos nós, os brilhos! Brincaste tanto connosco quando eras mais nova, não te lembras? Nós estamos aqui porque precisamos da tua ajuda!
– Não me lembro bem, mas lembro-me de sempre vos ver por todo o lado.
– Sim! Amiga! Ainda bem que lembraste de nós! Tu és a única pessoa que nos pode ajudar! É muito urgente!
– Eu? Ajudar? Como?
– Tu és um dos poucos humanos que nos consegue ver. Nós estamos noutra dimensão, então, nem todos os humanos conseguem ver para além da dimensão material. Fora tu, só mais quatro humanos nesta escola que nos conseguem ver e dois já foram escolhidos para o Clube da Sombra!
– Clube da Sombra?
– Sim, nós, os brilhos, procuramos estar sempre em equilíbrio com as sombras. É devido ao nosso equilíbrio que vocês, humanos, e a vossa dimensão se mantêm no rumo certo.
– O que acontece se houver muita sombra ou muita luz?
– Se houver muita sombra, vencem ideais como a ambição e a separação, vocês, humanos, terão guerras e sofrimento. – Os brilhos falavam rápido, as suas vozes ecoavam umas sobre as dos outras, como um eco de luz. – Se houver muita luz, vencem ideais como a aceitação e a união, os humanos perdem os desejos de ter algo mais e a sua identidade única, passando para outra dimensão. É um pouco complicado de explicar, mas é necessário haver o equilíbrio e nós precisamos de ti! Ajudas-nos, Amiga?
– Acho que sim. – Respondeu sem perceber muito bem aquilo que os brilhos falavam. – Como posso ajudar?
– Ah! Amiga! Sabíamos que podíamos contar contigo! O que precisamos que faças é que nos tragas o último humano que nos consegue ver. Ele chama-se Gabriel e está a ter aulas na sala A-202.
Áurea ao ouvir o nome congelou.
– N-Não, n-n-não essa pessoa não! – pediu Áurea.
– Amiga! Não achas que é uma ótima altura para redimires? – os brilhos estavam cada vez mais próximos quase faziam a forma de um grande losango.
– Porquê ele?!
– Porque ele vê-nos como tu. O Clube Sombra já tem dois humanos e nós só te temos a ti.
– A mim?!
–Sim, no momento em que conseguiste ver e abrir aquela porta já pertencias ao nosso grupo da luz, amiga.
– Mas… eu nunca me decidi a entrar no clube… nem sei fazer nada…
– Podes fazer o que nós não podemos nesta dimensão. Se entraste aqui é porque valorizas mais a aceitação e a união, os nossos ideais.
» Agora, precisamos que vás ter com o Gabriel e que o tragas aqui. Deixa que ele veja a porta e a abra por si, não o podes forçar, nem convencer! Está quase a tocar! Vai, amiga!
A porta abriu-se e a cadeira onde Áurea estava sentada arrastou-se para trás e ela tropeçou. Levantou-se ainda indecisa e avançou para a sala A-202. Era uma capicua, o que era bom sinal. Ao chegar lá, a campainha tocou e todos os alunos saíram pela porta como a água de uma torneira, todos de uma vez e depois gota a gota, o último era Gabriel que falava com uma colega bonita, cheia de brilhos à sua volta.
Ele saiu e ignorou Áurea, como se ela não existisse. Numa voz gasta pelos sentimentos, ela disse:
– G-G-Gab-Gabriel, espera eu-eu-eu pre-pre-preciso de falar contigo!
Ele olhou para Áurea, abriu muitos os olhos. Ele disse adeus à colega e voltou-se para Áurea:
– O que tu queres? Vens-me acusar de ser doido como os outros?! — murmurou furiosamente.
– N-Não é isso. Vamos para outro lugar com menos pessoas, pode ser?
Ele concordou, ao longo do corredor até à porta do Clube, Áurea recordou que Gabriel tinha sido o seu primeiro amigo na escola. Ele também via os brilhos e as sombras. No entanto, um dia ele contou aos outros colegas e eles chamaram-no de doido. Pediu, à frente dos outros, para Áurea confirmar o que vira, mas ela não foi capaz. A partir desse momento, Gabriel ficara sozinho e Áurea ficara rodeada de amigas. Chegados à frente do Clube ele olhou fixamente a porta. No entanto, não entrou.
– Então o que querias falar?
– E-e-e-eu queria pedir-te des-de-de-descul-pa. E-e-e-eu nã-nã-ão consegui admitir o que via. Ti-tive me-me-do, muito medo – ela só conseguia gaguejar as palavras já muito ensaiadas na sua mente.
– Sabes, eu também tive muito medo, mas não sabia que eles iam deixar-me sozinho só por ver brilhos e sombras… Desde que não fales nada na minha turma, eu perdoo-te.
– N-Não digo, prometo! — respondeu ela rapidamente antes que ele mudasse de ideias.
– Por falar nisso, tu também vês esta porta? Tem o meu número.
– O teu número?
– Sim, o meu número 7.7. Sabes, eu nasci a sete de julho. Sabes o que está lá dentro?
Áurea sorriu. Ele também tinha um número. Antes que ela pudesse responder, ele entrou para o Clube da Luz.
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