Maria era filha de António, um pescador da Costa da Caparica.
O seu pai já nem barco tinha. Ia todos os dias para o pontão pescar. Ele tinha muitos clientes para o pouco peixe que pescava, nem precisar de ir ao mercado, as pessoas compravam o peixe diretamente no pontão. Por vezes, deixavam-no sem peixe para o almoço.
António acordava às quatro da manhã, às cinco já estava na praia a tomar banho de mar antes de ir para pontão. Deixava apenas o seu boné e a T-shirt na praia e juntamente o vestido de Maria que ia com ele. Maria ia sempre que podia com ele, até mesmo no inverno, sem banho de mar. Nos dias de chuva e de muito frio, o pai proibia-a de ir. No entanto, naquele dia de Sol com uma brisa fresca e firme que fazia a areia bater nos corpos, Maria estava lá a apanhar conchas na praia.
Maria tinha medo do mar. Talvez pela tempestade que destruiu o barco do seu pai ou porque sempre lhe disseram que era preciso respeitar o mar e nunca lhe virar as costas. O seu pequeno corpo com apenas seis anos assustava-se ainda com a sensação da areia a fugir-lhe dos pés sempre que as ondas a atingiam. Por isso, Maria só ia para o mar com o pai. Ficava na areia a fingir que o frio não existia e a olhar o pai de longe. Maria gostava de ir e de ver o pai enquanto apanhava conchas, a mãe morrera quando ela nasceu. Não gostava de ficar com a tia, peixeira de profissão, parecia só saber gritar com ela e com os primos.
Ela apanhava conchas e mais conchas e juntava-as num canto, até o mar as fazer desaparecer. Quando uma vez mostrou ao pai a grande quantidade que tinha juntado, ele abanara a cabeça sem compreender qual o fascínio por conchas da filha.
Maria caminhava horas pela praia, mas não se afastava muito com receio de deixar de ver a cara enrugada do pai, o sorriso que ele dava aos seus clientes e a sua paz contemplativa ao olhar para o mar.
Maria sabia que gostava de conchas e de as apanhar, mas ficava triste por não saber o que fazer com elas. Eram todas tão bonitas, mágicas, mesmo as partidas. Algumas até tinham cores. Naquela manhã encontrou uma lilás. Como se tinta a tivesse manchado. Ela considerou-a mais mágica do que as outras e agarrou-a com ambas as mãos e pediu para lhe mostrar o que poderia fazer com as conchas para o pai reparar nela e sorrir para ela. Mal tinha acabado o pedido um casal com uma filha, apareceu à sua frente e perguntou-lhe se estava perdida. Ela apontou para o local onde o pai estava a pescar.
– Porque não estás com o teu pai?
– O pai disse que nã pode ser… é p´rigoso…
O casal trocou olhares apreensivos. Puxaram a sua filha para a frente.
– Esta é a Vânia, a nossa filha, se quiseres, podes brincar com ela – disse a mulher a sorrir.
Vânia era muito diferente de Maria, os seus olhos eram turmalinas a brilhar em contraste com os azuis insípidos de Maria, o cabelo negro com caracóis indomáveis contra o loiro lambido. Era alta e o dobro de Maria. No entanto, ela sorriu.
– O que é que ´tás a fazer?
– A ap´nhar conchas – e apontou o monte de conchas no canto da praia.
– P´ra quê?
– Nã sei…
– Como não sabes? – riu-se Vânia-- Queres levá-las p´ra casa?
Maria abanou a cabeça.
– Nã. Já tenho muitas em casa… O pai nã gosta…
– ´tão porque não fazes castelos na areia e colocas as conchas a decorar?
Maria sorriu.
– Parece giro. Achas qu´o pai vai gostar?
– Não sei… Os meus gostam quando os desenho comigo. Anda, eu mostro-te.
Vânia fez um desenho com um pau com ela, o pai e a mãe. Quando terminou chamou os pais para verem. A mãe abraçou-a e beijou-a e o pai juntou-se aos abraços. Maria sorriu.
A hora de António sair da praia estava quase a chegar. Maria ao ver o efeito do desenho de Vânia pediu ajuda para fazer o mesmo. Teriam de inventar uma mãe, porque Maria raramente via as fotos da mãe. Vânia ajudou-a ao desenhar uma mãe pouco diferente da sua, mas com brincos e colar em conchas. Maria juntou as conchas para fazer o boné que o pai sempre usava e colocou as restantes no seu próprio desenho com o seu chapéu de abas e as mãos cheias de conchas.
A hora chegou, António levantou-se e viu a filha acompanhada pela primeira vez a fazer outra coisa que não era apanhar conchas. Ficou curioso. Chamou-a, mas ela não pareceu ouvir. Quando deu a volta ao pontão e começou a descer para a praia voltou a chamar por Maria e ela finalmente olhou para ele. Como aquela menina lembrava-lhe a mãe, doía-lhe o coração só de a ver. A mãe só tinha engravidado aos cinquenta anos, quando soube nem quis saber da idade nem dos perigos ou qualquer outra coisa. Teimosa como só ela decidiu sem lhe perguntar que queria ter a criança. Ao tê-la ela partiu e deixou-lhe aquela miniatura, linda como ela. Agora ali a olhar para ele com olhos brilhantes.
– Pai! Pai! Olh´ó qu´eu fiz p´ra ti!
António viu o desenho de eles os três com as conchas que a filha insistia em apanhar. O coração esqueceu-se de bater e um sorriso apareceu antes de a sua pele seca pelo Sol se transformar em dois rios entre rugas. Abraçou a filha por ter feito por uma vez o seu sonho: a imagem da sua família toda reunida.
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