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Companhia de Natal

 Temos três tipos de família. Aqueles de quem nascemos, aqueles que nascem de nós e aqueles que deixamos entrar nos nossos corações. 

Sherrilyn Kenyon

Imagem retirada do Website Pixabay.com


Florbela fechou o livro e olhou pela janela. Ela gostava de ter a janela aberta e a rádio ligada faziam a casa parecer cheia de gente, especialmente porque a escola primária gritava risadas e conversas dos alunos para quem quisesse ouvir. No entanto, as férias de Natal começavam no dia seguinte e Florbela sentia já a apreensão do silêncio. Talvez, não devesse ter-se reformado. Deveria trabalhar até morrer, trabalhar na rádio como técnica de apoio de emissão, ver as emissões ao vivo em vez de apenas ouvir em casa, assim não tinha de fugir do silêncio. A voz da rádio concordou: «esta a música é para quem está a sentir saudades». A melodia embalou-a enquanto ela voltava ao livro. Já estava a ler pela terceira vez Jane Eyre. Tinha que ver se conseguia comprar um livro novo. Estavam caros, mas se calhar um livro de bolso não era impossível ou um livro usado... 

«Caro leitor, casei-me com o Senhor Rochester.» 

A frase fez-lhe lembrar que nunca tinha casado. A promessa de Edward tinha ficado com ela demasiado tempo, mas ela nunca mais tinha conseguido sentir o mesmo do que quando ouviu aquelas palavras:

 - Espera por mim, eu volto assim que conseguir estabilidade para vires comigo para Paris!

- Sai! - gritou uma criança na escola. Como se fosse comandada pela criança, Florbela levantou-se e pensou em ir comprar o livro. Já tinha dinheiro poupado o suficiente para caso lhe acontecesse alguma coisa.

Quando chegou às caixas de correio, viu um livro em cima destas, um pouco usado, mas ainda em muito bom estado para ser lido. Olhou para o prédio e estava vazio, silencioso, abriu a porta da rua e a caminhar com dificuldade estava a vizinha do quarto andar, dois andares a cima do dela. Hesitou se a deveria chamar ou não. 





Madalena gostava de ler em silêncio. Só no silêncio poderia ouvir algum som perturbador ou de alerta caso esteja a acontecer alguma coisa. A única coisa na sua casa que lhe fazia impressão era os espaços vazios. Lembravam-lhe a bela família que um dia teve, mas que agora só sussurravam saudades. O seu neto que nunca tinha nascido. A sua filha que lhe foi roubada por um genro violento. A calma e o silêncio do seu marido Camilo. Ainda se lembrava de quando se tinham conhecido e ela lhe tinha dito que tinha o mesmo nome que o seu autor preferido.

Todos tinham espaços naquela casa que ela fazia o máximo por ocupar, como se ocupar o espaço poderia preencher os vazios que ficam no coração. A culpa de os ter perdido, de não ter dito tudo o que precisava... O Natal aumentava esses espaços e a casa tornava-se enorme. No entanto, não conseguia sair dela. Tinha sido comprada por ela e Camilo e tinham passado anos a pagá-la. Não conseguia sair dali. Por isso preenchia a cadeira dele, o lugar da sua filha Camila (sim, o mesmo nome do pai) com livros. Talvez, eles dissessem-lhes todas as palavras que Madalena se arrependia de não ter dito.


Quando se tem uma casa cheia de livros, por vezes, acontece esquecer que se tem certos livros e, por gostar tanto, acaba-se por comprar outra vez. Foi o que aconteceu com o livro Amor de Perdição. Ela leu e voltou a ler, mas ao colocar na fila de trás de uma fila dupla de livros de uma estante, acabou por procurar e não o encontrar. Como a vontade de ler era muita, foi comprar um novo e acabou com dois. Estava a fazer uma arrumação aos livros quando reparou nos dois exemplares. O que poderia fazer? A biblioteca era longe e ela já não tinha pernas, nem para ir de autocarro. Gastar dinheiro no táxi só para dar um livro era impensável, deitar fora também. Ainda neste dilema desceu no elevador do prédio. Lembrou-se do peso das compras para o almoço e mais o livro… Porque não apenas deixar ali o livro? Nem pensou mais no assunto, deixou-o em cima das caixas de correio e seguiu o seu caminho. 


Estava já a meio caminho da mercearia, quando alguém a chamou:

- Vizinha, vizinha! O seu livro! - Florbela corria, mas os seus setenta anos pesavam nos passos e faziam os seus pés vacilarem. Madalena ficou espantada, como ela sabia que o livro era dela?

- Não precisa de correr - Madalena aconselhou, lembrando-se da sua queda, em casa sozinha que tinha custado tanto a recuperar, ainda coxeava por isso – eu espero!

- Podia perder o livro... - Florbela estava ofegante- e os livros são tão caros hoje em dia! 

Madalena olhou para Florbela que segurava o livro que ela já não queria como fosse uma pedra preciosa. Pensou nos livros que tinha acumulados em casa, a ganharem pó...

- Também não são assim tão caros...

- Podem não ser para si, mas eu sou uma mulher sozinha e a minha reforma... - Madalena não precisou de muito para entender que a reforma de uma mulher solteira é pior do que da que tem o apoio do marido, mesmo quando este já faleceu. As pessoas sozinhas sofrem sempre mais, pela solidão e até pela falta de dinheiro.

- Pode ficar com ele, eu já não quero esse livro – disse Madalena a querer terminar o assunto. 

- Mas é de Camilo Castelo Branco... Um clássico! - Florbela deu umas festas no livro como se ele compreendesse a rejeição de Madalena. 

- Eu já li e já não preciso dele, já disse! - Madalena prendeu o livro nas mãos de Florbela – pode ficar com ele. Olhe, pense nisto como uma prenda de Natal. Agora, deixe-me ir! 

Florbela ficou a olhar para o livro enquanto Madalena desapareceu de vista, mesmo a coxear, tal era o seu espanto de receber um livro como prenda de Natal. Desde que os seus pais morreram nunca mais tinha recebido uma prenda de Natal. 


Madalena estava a ler no seu canto preferido com uma chávena de chá a fumegar a seu lado. O ritual de leitura estava completo e ela tinha a sua manta nas pernas para as manter quentes. Estava tudo perfeito, o livro estava a ser muito interessante também. Os Fidalgos da Casa Mourisca estavam-lhe a falar de Berta, quando um som tão inesperado pela raridade vindo da sua campainha entoou, fez Madalena saltar na sua poltrona. Quem poderia ser ainda mais às cinco da tarde da véspera de Natal?


- Boa tarde vizinha – Madalena surpreendeu-se ao ver Florbela à porta – fiquei muito grata pelo seu presente. Pensei em dar-lhe um livro, mas não sei os seus gostos nem que livros tem, então resolvi trazer um bolo-rei e trazer-lhe um dos meus livros preferidos para o caso de querer ler...

Florbela falou tudo muito rápido e sentia-se cada vez mais desconfortável com o silêncio de Madalena. Quando terminou, já não sabia mais o que dizer e ficou com medo de ser expulsa. No entanto, Madalena apenas pegou no bolo-rei e levou-o para a cozinha com um «fique à vontade» apontando para a sala que parecia ter sido retirada de uma biblioteca a abarrotar de livros. As únicas decorações da época eram uma pequena árvore de Natal daquelas que se compram já decoradas e um presépio do mesmo tamanho.  Florbela ficou a olhar para as pilhas de livros em cima de mesas, cadeiras e até sofás como se tivesse entrado no castelo de Hogwarts. 

Madalena só conseguia pensar nas coisas que estavam erradas na sua casa. Devia ter mais decorações de Natal e ter arrumado melhor os livros. Já não se lembrava quando tinha tido uma visita e muito menos quando foi a última vez que lhe tinham dado um bolo-rei! Talvez, alguém da biblioteca onde Camilo trabalhava? Enfurecia-a não conseguir se lembrar!

Quando Madalena voltou viu Florbela maravilhada a olhar para os livros da sua sala, como se nunca tivesse visto tantos livros juntos antes. 

- Parece que nunca viu livros – riu-se Madalena ao ver a expressão de Florbela.

- Como consegue ter tantos livros?

- Foram-se acumulando ao longo dos anos, o meu – uma pausa para se impedir de chorar ao dizer «o meu Camilo» - marido adorava ler, era bibliotecário...

- Ah! Entendo… Só comecei a ler quando me reformei, antes vivia para o trabalho e quando chegava a casa era a televisão que me abstraía, agora, arrependo-me não ter comprado mais livros quando podia...

- Posso-lhe emprestar sempre que quiser, ou pode vir aqui ler – Madalena deu por si a responder. Talvez, ela também se sentisse sozinha. Os olhos de Florbela brilharam.

- Muito obrigada – aceitou uma fatia de bolo-rei que Madalena tinha fatiado.

- Deixe-me ver esse livro. Dom Casmurro, esse ainda não li...

- Ainda não? Precisa de ler, é muito bom! – Florbela assegurou.

- Estava a ler agora um romance – mostrou-lhe o livro de Júlio Dinis- quer ler comigo? Pode escolher um livro qualquer das estantes. 

Florbela aceitou, sentia-se quase a flutuar por estar entre livros e por ter companhia naquele dia em que a sua solidão se afundava no peito. Depois de ler umas cinco páginas o silêncio da casa de Madalena fazia-lhe impressão. No entanto, olhou para Madalena concentrada a ler, tranquila e pela primeira vez viu-lhe um sorriso no rosto. Mesmo estando em silêncio, Florbela já não se sentia sozinha. 

Madalena sorriu para o livro porque pela primeira vez desde que o seu Camilo partiu, ela não se sentia insegura e desprotegida naquela casa cheia de vazios. Pensou em Florbela que passou a sua vida sem casar, todas as pessoas a conheciam e sabiam que ela nunca tinha casado. Madalena olhava para o livro, mas pensava numa ideia que lhe começou a surgir, nem se zangou quando Florbela interrompeu a sua leitura e disse: 

- Podemos ler algumas das nossas partes favoritas mais tarde?
 
- Sim, claro às onze – Madalena a olhar de esperança de poder passar a noite de Natal com companhia – Será que pode jantar aqui? 

- Seria um enorme prazer - Florbela sorriu com os olhos a brilharem de lágrimas.

- Ótimo, vou meter o jantar a fazer. 

Madalena sorriu a ir para a cozinha. Nem sempre o Natal é da família que temos, por vezes, é apenas daqueles que deixamos entrar no nosso coração. 


Imagem retirada do Website Pixabay.com




Feliz Natal! Espero que o vosso Natal esteja tão cheio de carinho e felicidade quanto a casa de Madalena está de livros! :)





Sou blogger e escritora do Wattpad. Comecei a ser blogger para partilhar os meus escritos, mas com o tempo comecei a escrever mais sobre leitura e escrita. Gosto de fugir da realidade para mundos fictícios e acredito que eles ajudam-me a compreender melhor a vida. Não consigo passar um dia sem escrever e sem beber café.

Comentários

  1. Oi Marta,
    Eu sempre falo, nem sempre é questão de sangue e sim de afinidades. Espero que você tenha passado o Natal com quem você ama, te desejo ótimas festas!
    beijos
    http://estante-da-ale.blogspot.com/

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    1. Concordo completamente Alessandra :) Foi uma noite de Natal muito boa, obrigada.
      Feliz dia de Natal e boas festas :)
      Beijos

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  2. Mery Christmas to you and all type of your family members.....

    # Lovely writing to read

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  3. Oie Marta!

    As vezes é o que precisamos deixar entrar no coração que faz a diferença, não é verdade?
    Que lindo o texto!!
    sou acumuladora que nem o bibliotecario rs
    Beijos!
    Pâm
    Blog Interrupted Dreamer

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    1. Oi Pâm!
      É verdade :) Fico muito feliz por isso :D Eu também... ahahah!
      Beijos

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  4. Gostei, a história sobre a leitura de livros é muito interessante, ficaria bem num livro sobre os livros na vida das pessoas. :) Um Feliz Ano Novo!

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    1. Olá Raquel!
      Que bom que gostaste, sim, acho que me inspirei um pouco no filme «A Sociedade Literária Tarte Casca de Batata». Apesar de ainda não ter lido o livro, penso que histórias assim são sempre uma inspiração para as nossas leituras :) Obrigada!
      Feliz Ano Novo! :)

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  5. Amei o seu texto tem uma frase que você citou" Temos três tipos de família. Aqueles de quem nascemos, aqueles que nascem de nós e aqueles que deixamos entrar nos nossos corações" que achei super tocante.
    https://estilopropriobysir.com/

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    1. Olá Siça!
      Também achei por isso coloquei :) É do livro «O Natal de um Predador da Noite» que é gratuito e que podes ler a opinião no blog. Obrigada e boas festas :)

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